30/07/2010

A Potência do Escuro

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A POTÊNCIA DO ESCURO
(Sobre Liberdade, Dúvida e Sentido)
Filipe Pinto
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Para o cego no quarto escuro à procura do gato preto que não está lá (curador: Anthony Huberman),
Lisboa, Culturgest, Galeria 1, de 29 de Maio a 29 de Agosto de 2010
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Crítica à exposição para a revista Artecapital:
www.artecapital.net
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26/06/2010

Notas para uma leitura lateral de 'Nude' de Inês Pais

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Nude - Exposição de Inês Pais na VPF Cream Art
24 Junho - 31 Julho
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(Fazer o Download do texto)
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NOTAS PARA UMA LEITURA LATERAL DE ‘NUDE’ DE INÊS PAIS
(sobre Sexo, Acontecimento e Fragmento)
Filipe Pinto

1.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. (Julio Cortázar, Rayuela)

2.
A um palmo da minha cara, ela ia abrindo a boca tanto de prazer como de espanto; e eu espantado também, não com o espanto dela, nem na verdade com o meu, mas porque o espanto é a outra cara do prazer.

3.
A um palmo da minha cara, ela franze a testa, o que quer dizer que tanto não percebe como desconfia; estranha.

4.
O que não é estranho é invisível. (Paul Valéry)

5.
O prazer será sempre surpreendente; como poderia o prazer não causar espanto? Como poderia fulgurar na pura repetição? O prazer não é reconhecimento, é acontecimento.

6.
O prazer é quando o sexo se desdobra e activa o que há em si de potencial para o deslumbre.

7.
Que alguma coisa aconteça, a ocorrência, significa que o espírito é desapropriado. A expressão ‘acontece …’ é a própria fórmula da não dominação do ser pelo ser. O acontecimento torna o ser incapaz de tomar posse e controlo do que é.
(Jean-François Lyotard, O Inumano)

8.
O acontecimento é uma crise da compreensão.

9.
Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é o que devemos chamar pensar, (…), pensar consiste mesmo em receber o acontecimento, (…), pensar é questionar tudo, inclusivamente o pensamento, a questão e o processo. Ora, questionar requer que algo aconteça cuja razão não seja ainda conhecida. (Jean-François Lyotard, O Inumano)

10.
Percebe-se agora a relação intrínseca entre acontecimento, pensamento e conhecimento. O acontecimento é algo novo, espantoso, que, ao acontecer imprevistamente, provoca um movimento do pensamento a fim de constituir um conhecimento do que se passou.

11.
A palavra pensamento tem, originalmente, na nossa língua [italiana], o significado de angústia, de ansioso ressentimento, ainda presente na expressão usual: ‘stare in pensiero’. O verbo latino pendere, do qual a palavra deriva para as línguas românicas, significa ‘estar suspenso’. Agostinho usa-o neste sentido para caracterizar o processo do nosso conhecimento: ‘O desejo que está na busca procede de quem busca e está, de algum modo, em suspenso [pendet quodammodo] e não repousa no fim para o qual tende, senão quando aquilo que é buscado é encontrado e se une àquele que busca. (Giorgio Agamben, A Linguagem e a Morte)

12.
A etimologia da palavra studium torna-se (…) transparente. Ela remonta a uma raiz st- ou sp-, que designa o embate, choque. Estudo e espanto (studiare e stupire) são, pois, aparentados neste sentido: aquele que estuda encontra-se no estado de quem recebeu um choque e fica estupefacto diante daquilo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até ao fim, como de se libertar delas. Aquele que estuda fica, portanto, sempre um pouco estúpido, atarantado. Mas, se por um lado ele fica assim perplexo e absorto, se o estudo é essencialmente sofrimento e paixão, por outro lado, a herança messiânica que ele traz consigo incita-o incessantemente a prosseguir e concluir. Esta festina lente, esta alternância de estupefacção e de lucidez, de descoberta e de perda, de paixão e de acção constituem o ritmo do estudo. (Giorgio Agamben, Ideia da Prosa)

13.
I take the word ‘studio’ literally, not as a space of production but as a time of knowledge. (Gabriel Orozco)

14.
Perante o acontecimento pensamos em suspenso e estudamos em choque.

15.
Na verdade, tempo e acontecimento são sinónimos, quer dizer, se o tempo é duração e se esta depende da diferença proporcionada pelo acontecimento, então não pode existir tempo sem acontecimento. Como nos lembra Benjamin, ao escrever sobre um seu conhecido, “viveu o período mais ordenado da sua vida quando era mais infeliz. (…) O caminho da sua vida parecia que estava pavimentado, sem a menor fresta onde o tempo tivesse oportunidade de proliferar”.

16.
O acontecimento interrompe.

17.
A sua interrupção deve transtornar tanto quanto a sua aparição surpreendeu. Neste sentido o seu uso deve ser extremamente circunspecto, e raro, como o grito, que não tem eficácia e poder terrível senão quando nada o prepara e quando nada o repete. (Pascal Quignard, Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos)

18.
Como é belo o teu grito que o teu silêncio me dá! (René Char, O quarto no espaço)

19.
A rotina é algo que roda e volta ao mesmo – pisa as pegadas do caminho percorrido, como se a experiência fosse um campo minado –, e nesse movimento gera uma força já não centrífuga, para fora, mas centrípeta, para dentro. É, por assim dizer, um movimento de destruição de toda e qualquer possibilidade de desejo – que é sempre desejo de exterior, de algo que nos é exterior, que não somos ou possuímos –, num processo cada vez mais autista, de auto-suficiência até ao definhamento. O desejo depende da distância, da distância que nos liga ao mundo. Na decadência centrípeta da rotina, o espaço escasseia cada vez mais, até ao ponto da última coincidência num ponto central, um buraco negro, consumista e final.

20.
É a distância que nos permite desejar, como já vimos – por isso escreveu Blanchot que o desejo é a distância tornada sensível. Só desejamos o que não somos, o que não temos, o lugar onde não estamos. Só desejamos porque a distância se intromete entre nós e as coisas.

21.
Ela sabia o que era o desejo – embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. (Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

22.
Depois de muito matutar, Zeus, por fim, lá se decide: «Parece-me», anunciou, «que arranjei processo de continuar a haver homens e acabar de vez com a sua arrogância: é enfraquecê-los. Agora mesmo vou dividi-los ao meio um por um.» (…) À medida que os ia cortando, encarregava Apolo de lhes virar o rosto e a metade do pescoço para a superfície amputada, na ideia de que os homens se tornariam mais humildes com o espectáculo da sua própria amputação diante dos olhos. (…) Ora, quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada metade, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; e estendendo as mãos em volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam do que fundir-se num só ser. (…) Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e muda-lhes para diante os órgãos genitais. (…) Ao mudarlhes, pois, os órgãos genitais para diante, Zeus determinou que a geração humana passasse também a efectuar-se de uns para outros. (…) Dessa época longínqua data, sem dúvida alguma, a implantação do amor entre os homens – o amor que restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois um só, curando assim a natureza humana. (Platão, O Banquete)

23.
Deixa-te acariciar, vá.
Gosto de dividir em dois tudo
no teu corpo, assim como este verão
dividia o mar quando nadava de bruços.
(Herman de Coninck, ‘Tarde de Verão, Trocamos palavras e tempo’)

24.
É aquela a explicação de Aristófanes para o desejo – cada um de nós é afinal apenas metade; virá daqui talvez a ideia da alma-gémea, da cara-metade, etecetera; a busca por tentativa e erro (falhar sempre melhor) do outro que nos restitua a unidade. Até lá, contudo, a pele isola.

25.
Porque eu vivia, quando abro os braços, dentro e fora. E quando ponho as mãos nos joelhos, só dentro. E quando ponho as mãos debaixo dos pés, já lá fora. (Botho Strauss, Fragmentos da Incompreensão)

26.
Nunca andamos de mão dada, a não ser para passar a estrada.

27.
I can feel for any reason
need at any time
No sentimental niceties
and it doesn’t cost a dime
Have it when I want it
and every time’s the best
It’s convenient
When I need release
and guaranteed success
Pain killer

There is nothing to be won
nothing I can lose
I can live alone and love myself
and never get the blues
Not obligated by dependency
to demonstrate my gratitude
It’s a remedy
a safe investment in my attitude
of being good to me
being good to me

They make no demands, my own hands
My own hands, make no demands

It’s a simple reaction
an easy satisfaction
No ultimate thrill, but still
relief without grief
of betrayal
I can say I need you
but it isn’t true
I can say I love you
but it’s only an invention
to perpetuate convention
I could say you’re important
but it’s only relative
Pain killer cools out
the immediacy of priority

Get no stress from my own caress
Get no stress from my own caress
I get no stress from my own caress

It’s not an ideal world
and I didn’t make it
If the risk is there
I ain’t gonna take it
I’ll take control
The redundancy
of sexual dependency
And if there’s no penetration
you got to use imagination

I’m happy with my hand
I’m happy with my hand
I’m happy with my hand
(Annette Peacock, Happy with my hand)

28.
Schlegel mostrava que, como as obras que admirávamos mais – quer dizer, desde a Renascença, as obras da Antiguidade – nos tinham chegado no estado de fragmentos, as obras dos modernos procuravam assumir esse estado logo ao nascerem, imputando o fascínio que exercem à fragmentação e julgando que estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes, ao provocarem o desejo do todo, ampliavam a emoção. (…) [Os fragmentos] são comparáveis àquelas pocinhas de água caídas no caminho depois do aguaceiro e que a terra não bebeu. Cada uma delas reflecte todo o céu, as nuvens que se rasgaram e que passam, o sol que luz de novo. (Pascal Quignard, Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos)

29.
E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água. (Julio Cortázar, Rayuela)

30.








(Gabriel Orozco, Pelota en agua)

31.
A pele isola; a pele fragmenta. A pele é um sistema que divide o mundo (num interior e num exterior); a pele é uma ameaça. (sobre a pele, ler o texto “Fotografias da Distância” – download em www.lightinthefridge.blogspot.com)

32.
Diz-se que o palhaço chora enquanto faz rir; a máscara, com o sorriso permanente pintado, exacerba a pele – nele, como em nenhuma outra figura, a pele institui um dentro e um fora absolutamente divergentes.

33.
É uma oval perfeita, ou melhor, uma oval um pouco triangular, mas a pele é luminosa, como se fosse iluminada pelo interior. (Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) a descrever a senhora Tabard (Delphine Seyrig) em Baisers Volés de François Truffaut)

34.
Quando passei por ti ali nas arcadas frescas da câmara de Tavira, tu tão branca branca na tua pele de norueguesa, e eu branco branco também, que pensei ser possível diluirmo-nos um no outro – de quem é esta perna, esta mão?

35.
I am always taken with the experience of sitting on a seat in the subway and feeling the body heat of someone who sat there before me. Maybe I never saw them, but I feel very close. One body recognizes the warmth of another. I seek that recognition in ny work. (Janine Antoni)

36.
Mulheres que ninguém vê, atenção! Poeta procura modelo para poemas. Sessões de pose exclusivamente durante sono recíproco. René Char, 8 ter, rue des Saules, Paris. (Inútil chegar antes do cair da noite. A luz é-me fatal). [Este texto apareceu sob a forma de pequeno anúncio num jornal parisiense; Char recebeu a visita de duas jovens que, como estava especificado, se apresentaram ao cair da noite…] (René Char, Anúncio)

37.
I’ll be with you. I’ll be there.
I’ll never leave you.
Your shirt on my chair.
Laurie Anderson, Bright Red)

38.
Os reflexos são respostas orgulhosas que certas superfícies dão à luz incidente, como faz a tua pele ao sol que a notabiliza.

39.
Uma pedra não tem pele. (Rosa Maria Martelo, A Porta de Duchamp)

40.
[Sabão,] nenhuma casca, nem sequer epiderme: porque nenhuma pretensão de ser autónomo. (Francis Ponge, O Sabão)

41.
Forensic specialists imagine the faces that masked old skulls. (David Shields, Reality Hunger)

42.
O arqueólogo restitui a carne ao osso, e a máscara ao rosto.

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O fragmento é uma presença que mostra uma ausência; nisto, funciona como as palavras e os rastos. Este texto é também ele fragmentado, pixelizado; evoluímos aos solavancos; tenta servir para alguma coisa, aliás como o título dá a entender, mas o seu sucesso é incerto. Estas notas, estes fragmentos – píxeis –, são resultado mais da confusão que da depuração (purificação), sendo que a confusão é aqui vista como um estado potente de ligações e pontos de fuga. Lisboa, Junho 2010

09/06/2010

Texto sobre 'La Cienaga'

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Publicação do exto de apresentação do filme ‘La Cienaga’ na revista ArteCapital.
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(LER TEXTO)
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23/05/2010

A Propósito de 'La Cienaga' de Lucrecia Martel

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(DOWNLOAD do texto em formato PDF)
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A PROPÓSITO DE LA CIENAGA DE LUCRECIA MARTEL
(Sobre Tempo, Solidão e Cinema)
Filipe Pinto


Texto apresentado por ocasião da projecção de La Cienaga (O Pântano)de Lucrecia Martel na Livraria Trama, em Lisboa, no dia 21 de Maio de 2010


1.

Começo por dizer que não vou aqui contextualizar o filme, isto é, falar do lugar cultural e político de onde provem; não me vou referir ao chamado cinema novo argentino, do qual aparentemente Lucrecia Martel faz parte, nem da decadência da classe média desse país, que supostamente é retratada neste Pântano, nem das tensões raciais que perpassam todo o filme.

Também não me debruçarei sobre o assunto, sobre o tema do filme, seja ele qual for; na verdade, o movimento habitual pela procura do tema de um filme, como se fosse uma espécie de intriga policial em busca de um significado, foi sempre algo que me interessou pouco; por duas razões:

Se admitirmos que uma obra de arte ou um filme tem um tema, não haverá melhor pessoa para o desvendar do que o próprio autor – e a palavra do autor aprisiona sempre a experiência, cria um escantilhão para percepção: ora, a demanda pelo assunto de uma obra pode ser sempre infrutífera, enganadora, frustrante. Claro que se poderá dar o valor ao movimento de procura e não à sua conclusão, mas aí o ponto de partida será ele mesmo já enganador – perguntamos e perguntamos e vamos respondendo, sem no entanto fazermos sequer ideia se nos aproximamos ou não do fulcro; e a bem dizer, sem isso nos interessar verdadeiramente.

Enfim, e se se quiser, vejo a experiência artística como algo bem diferente de uma investigação policial, bem diferente de uma busca pela suposta verdade de uma obra, uma verdade que tem um autor, uma verdade autoritária.

A segunda razão que me faz obviar a busca por um tema, por essa verdade não explícita, é mais política e, parece-me, mais determinante. Quando, à frente de uma obra, nos perguntamos sobre o que isto quer dizer, ou o que quis o autor dizer com isto, estamos de facto a adoptar uma atitude de total subserviência em relação à obra, ao autor e à sua intenção.

Quando perguntamos o que quer isto dizer, o que quis o autor dizer com isto, esquecemo-nos de nós próprios, adoptamos um altruísmo que raras vezes é recompensado, que raras vezes se depara com algo que lhe mude a vida, ou um instante, que raras vezes enfim, se depara com um acontecimento.

Ao contrário, eu creio que a pergunta certa a fazer-se à frente de uma obra de arte, de um livro, durante ou depois de um filme, é, para que serve isto?, como posso eu utilizar isto? ou, tem isto lugar no meu mundo? Só assim, digo eu, pode a arte ser útil, isto é, entranhar-se na vida; o mesmo é dizer, arriscaria, só assim pode a arte ser importante.(1)

2.

No anúncio desta sessão lia-se “Apresentação a cargo de Filipe Pinto”; pois bem, esta apresentação é particularmente pessoal, como que a justificar o nome próprio incluído no anúncio.

O que já falei e o que vou falar resulta dos seguintes pressupostos – O que penso eu por causa deste filme?, Para que me serve este filme? Não vou pois falar tanto sobre o La Cienaga, mas mais sobre o que este filme me faz falar. Sendo uma apresentação pessoal, com isto pretendo que vejam o filme um pouco como eu – é uma tentativa de engendrar algo próximo de uma língua comum, uma experiência comunitária, uma tentativa talvez desesperada de comunicação.

3.

Sempre que vi este Pântano, acabei a pensar no tempo, e aqui especifico, tanto no tempo atmosférico como no cronológico. Logo no princípio reconhecemos o calor, a atmosfera tépida, a humidade espessa, o suor viscoso – tudo isto obriga a uma lentidão dos corpos, a um torpor decadente. Por coincidência, comecei a pensar nesta apresentação naqueles dias de calor obsceno de Abril passado, e, ao mesmo tempo, lia no diário de Vila-Matas o seguinte – “Detesto o Verão, o suor das sogras de perna aberta pelas areias do circo das praias, os arrozes ao sol, os lenços para o suor. Parece-me que o frio é muito elegante e ri-se de uma maneira infinitamente séria. E o resto é silêncio, vulgaridade, fedor e sebo de casa de banho. Fascinam-me os corpos suspensos no ar. Amo as ventanias, a luz espectral da chuva, a geometria acidental da brancura das paredes desta casa, onde reina o mais gélido frio existencial.”

Lembrei-me também que T. S. Eliot começa o poema The Waste Land com o verso April is the cruelest month; talvez se tenha enganado, talvez seja o Agosto, tão querido de alguns, a mensalidade mais impiedosa e severa. Agosto, apesar do descanso e liberdade que lhe parecem intrínsecos, é o mês mais excessivo – se lhe acontece a felicidade e a plenitude, serão as mais admiráveis e luminosas de todo o ano; da mesma forma, se nele sucede o desgosto – que rima tão bem com o seu nome –, será o mais penoso, com o calor do sol a avivar-lhe a ferida, a fazê-la arder, a encarniçá-la, a torná-la mais consistente e duradoura.

E é também em Agosto, por exemplo nestas mesmas ruas de Lisboa, aos domingos – que são o Agosto da semana –, nessa altura tão silenciosas e áridas, que perante o pino do sol, podemos ver com clareza a dimensão da nossa solidão – na claridade obscena, a distância fica visível como nunca. Nesta solidão iluminada pela luz quente do sol, olhamos em volta e nem vivalma nem sombra; ninguém atravessa a canícula – um deserto; o sol desertifica. Assim em jeito de ginástica adolescente, eu diria que o sol exala, exila, isola.

4.

La Cienaga não é passado em Lisboa, claro, nem sei bem se no mês de Agosto, mas dois dos elementos que percorrem todo o filme são o calor denso e a solidão de todos as personagens; solidão que é referida repetidamente por Martel quase como sendo a própria causa do seu cinema. E cito, “(…)estou convencida de que se nasce e se morre sozinho no corpo. Nunca há possibilidade de alguém ocupar o corpo de outro. Essa solidão inerente à condição humana parece-me que pode ser interrompida, por segundos que seja, através do cinema, através de certas experiências narrativas. O cinema para mim são duas horas em que, com sorte, consigo colocar o espectador no corpo de outra pessoa.”

Ainda sobre esta solidão – tema recorrente, claro –, cito uma passagem de um texto meu, “Temos o nosso corpo limitado, antes de mais nada, pela pele. Ao espelho, a criança, ainda com os movimentos balbuciados, reconhece o seu corpo íntegro e uno, mas, acima de tudo, reconhece-o independente do da mãe. Será talvez a primeira tragédia que vivemos. Podemos adivinhar, naquele relance fugidio, a nossa solidão perpétua, os seres separados, distanciados, que somos – amizade, amor, ou sexo são tentativas de confundir os limites dos corpos, mas a pele acaba por prevalecer; ‘Aproximámo-nos mais um do outro, tanto quanto a pele nos permitia’”, como escreveu Botho Strauss. “E é pela pele que nos fechamos em nós próprios, na lástima e no definhamento; ou pela pálpebra – finíssima pele – no desmaio e no sono. E no pensamento, a olhar para dentro a olhar para fora. Em suma, a pele assegura a respiração do corpo e o toque do mundo – o con-tacto, se quisermos – mas deixa incólume a nossa solidão congénita.“(2)

5.

A solidão faz então ver o espaço – explicita o vazio que nos distancia –, mas também serve para mostrar o tempo, para fazer estender o instante, ou para o parar. Heidegger talvez escolhesse o tédio, mas mesmo o tédio se pode instalar quando estamos acompanhados, aliás como o próprio Heidegger mostrou.

Nos filmes de Lucrecia Martel, e neste em particular, o tempo faz-se sentir pela solidão apática, pela inércia das personagens, mas também pelo próprio elemento que dá nome ao filme – o pântano, a piscina, essa água estagnada e pútrida.

Martel tem mesmo um discurso sobre as piscinas, e cito: “Não me tinha dado conta de que era um lugar tão fascinante, sobretudo porque me enojam. Gosto de nadar no rio, no mar. Mas a água parada faz-me impressão. Mas há outra coisa que me aterroriza: na cidade onde vivo, Salta, o acesso à água não é fácil. Uma piscina é um enorme privilégio. E parece-me que há um enorme egoísmo numa piscina. Elas devem existir quando são públicas, mas quando são privadas representam um egoísmo, porque esse pequeno paraíso deve ser para todos, tal como a saúde, a educação. O que é revolucionário é que os lugares para os prazeres, a preguiça, sejam de todos. Só assim estaremos um passo à frente na evolução espiritual do homem. E há uma coisa concreta: enquanto as pessoas com poder de compra constroem o seu paraíso artificial, descuidam-se os rios, os mares, os lagos, o acesso público à água deixa de ser importante. Em volta de uma piscina há muitas coisas a dizer sobre o estado do mundo. E o que é que me interessa nas piscinas? Essa conexão dos corpos que produz a água, que se parece muito com o som. Uma piscina é muito parecida com uma sala de cinema. O ar é um meio elástico, o som propaga-se nesse meio. Estar encerrado numa sala de cinema é como estar dentro de uma piscina. Estamos imersos. Não temos a consciência de que vivemos imersos no ar. Só o som é que nos pode dar essa consciência.”

6.

E o som é absolutamente determinante nos filmes de Lucrecia Martel. Martel diz mesmo que antes de filmar pensa e trabalha o som; quer dizer, vai para a rodagem ou com o som já desenhado ou com uma ideia muito concreta do que este vai ser. La Cienaga começa, logo no genérico inicial, com o som da floresta, os cicios dos insectos, grilos, cigarras, o esvoaçar das copas, o canto dos pássaros; todo este ambiente sonoro acompanha o filme, com excepção das cenas na cidade; e acompanha-o sempre em off-screen.

Este expediente alarga o fotograma, o plano, o próprio cinema – temos uma cena interior, mas ouvimos os trovões lá fora, os tiros da caça, os animais, como se se quisesse contrabalançar os corpos mortos-vivos das personagens com a vida da Natureza esfuziante lá fora. E este som fora do plano liberta o próprio filme da ditadura da câmara, que normalmente aponta para os gestos da acção, e assim, liberta também o espectador, que percebe algo mais do que vê – recebe o som invisível como uma opção, uma linha de fuga.

7.

E o que vemos nós em La Cienaga? Este filme não nos conta uma história – na lógica aristotélica, não encontramos aqui nem nós nem os respectivos desenlaces, apenas episódios; a acção vai passando de personagem em personagem, sem nunca se reter verdadeiramente em nenhuma, (embora possamos ver Mecha como uma espécie de protagonista).

Mas ainda assim, trata-se claramente de um filme trágico; trágico e violento; a morte e o sangue estão omnipresentes – a vaca presa à morte certa, a lebre na cozinha, o cão assustador que nunca se vê – off-screen, claro; (o susto e o desejo são sempre mais consequentes quando não se tem acesso directo ao seu objecto, quando este não se deixa ver), os disparos das armas e da tempestade que ameaça, a caça, a pesca à catanada, a já falada tensão racial, etc; e quase todas as personagens apresentam cicatrizes, feridas, sangue, rastos de sangue, imperfeições – corpos cariados, diria Lispector; o corpo é aqui filmado sempre em queda, e, na verdade, o filme quase se inicia com uma queda de um corpo, e quase acaba com uma queda de outro corpo; mas a tragédia permanece muda.

Aqui nada se passa, os corpos dormentes arrastam-se e caem, ferem-se e morrem, mas a tragédia, de tão quotidiana e dolente, é-nos mostrada com indiferença, sem gritos, sem pânico – resignação e habituação parece ser o que se lê.

8.

Martel faz um filme sem história, e em espelho, com uma dobra algures no meio; acaba como começa, como se nada se tivesse passado, com se La Cienaga fosse uma fotografia, algo parado mas com som, e é afinal esse som que denuncia a duração, o movimento, o tempo do filme.

Este cinema não sofre os incómodos da narrativa; enquanto espectadores, não somos puxados pela trela do encadeamento narrativo. Com este filme temos uma experiência de cinema, sem sermos desviados por uma história qualquer. A história faz-nos distrair do cinema; distrai-nos do seu tempo, do seu movimento. Numa história estamos sempre a recordar o que se passou e a imaginar o que se poderá passar, a temer ou a ansiar, um final trágico ou um happy end, perda ou angústia, felicidade ou espanto; estamos, diria, sempre a falhar o Presente irrequieto e fugidio que é o tempo do cinema – irrepetível, imparável, irreparável.

O Irreparável é o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados de coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo - é isto o Irreparável”, escreveu Agamben.(3)

Claro que poderemos ler em todas as cenas de La Cienaga um indício de algo não manifesto; tal como o ciumento ou o paranóico, poderemos ver o todo na parte, mas nesse caso estaremos a encarar o filme como um resumo, uma condensação espartilhada por imperativos de metragem ou outros. Ao contrário, eu acho que poderemos ver o filme como algo completo e explícito; como algo que é assim mesmo, e que quando acaba, acaba mesmo; irreparável.

La Cienaga propõe-nos uma experiência, um estado – a história não interessa nada.





(1) A propósito desta questão, ler o meu ensaio “Para uma Crítica da Interrupção” na revista ArteCapital, em http://www.artecapital.net/opinioes.php?ref=93

(2) “Fotografias da Distância”, em http://lightinthefridge.blogspot.com/2009/06/sobre-fotografia-e-pele.html

(3) Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p.71.

14/05/2010

Exposição 'Duas Peças', Leiria, Abril-Maio 2010

"La Grande Bouffe #2"
(projecção video sobre comida branca)

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"Montra"
(vinil de recorte)

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29/04/2010

O Presente Lento e o Tempo da Ruína

Publicação do ensaio "O Presente Lento e o Tempo da Ruína" no último número da revista CINEMA (41).
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Download pdf
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08/03/2010

Para uma Crítica da Interrupção

Ensaio para a revista ArteCapital
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'Para uma Crítica da Interrupção'
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http://www.artecapital.net/opinioes.php?ref=93
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