26/06/2010

Notas para uma leitura lateral de 'Nude' de Inês Pais

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Nude - Exposição de Inês Pais na VPF Cream Art
24 Junho - 31 Julho
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NOTAS PARA UMA LEITURA LATERAL DE ‘NUDE’ DE INÊS PAIS
(sobre Sexo, Acontecimento e Fragmento)
Filipe Pinto

1.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. (Julio Cortázar, Rayuela)

2.
A um palmo da minha cara, ela ia abrindo a boca tanto de prazer como de espanto; e eu espantado também, não com o espanto dela, nem na verdade com o meu, mas porque o espanto é a outra cara do prazer.

3.
A um palmo da minha cara, ela franze a testa, o que quer dizer que tanto não percebe como desconfia; estranha.

4.
O que não é estranho é invisível. (Paul Valéry)

5.
O prazer será sempre surpreendente; como poderia o prazer não causar espanto? Como poderia fulgurar na pura repetição? O prazer não é reconhecimento, é acontecimento.

6.
O prazer é quando o sexo se desdobra e activa o que há em si de potencial para o deslumbre.

7.
Que alguma coisa aconteça, a ocorrência, significa que o espírito é desapropriado. A expressão ‘acontece …’ é a própria fórmula da não dominação do ser pelo ser. O acontecimento torna o ser incapaz de tomar posse e controlo do que é.
(Jean-François Lyotard, O Inumano)

8.
O acontecimento é uma crise da compreensão.

9.
Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é o que devemos chamar pensar, (…), pensar consiste mesmo em receber o acontecimento, (…), pensar é questionar tudo, inclusivamente o pensamento, a questão e o processo. Ora, questionar requer que algo aconteça cuja razão não seja ainda conhecida. (Jean-François Lyotard, O Inumano)

10.
Percebe-se agora a relação intrínseca entre acontecimento, pensamento e conhecimento. O acontecimento é algo novo, espantoso, que, ao acontecer imprevistamente, provoca um movimento do pensamento a fim de constituir um conhecimento do que se passou.

11.
A palavra pensamento tem, originalmente, na nossa língua [italiana], o significado de angústia, de ansioso ressentimento, ainda presente na expressão usual: ‘stare in pensiero’. O verbo latino pendere, do qual a palavra deriva para as línguas românicas, significa ‘estar suspenso’. Agostinho usa-o neste sentido para caracterizar o processo do nosso conhecimento: ‘O desejo que está na busca procede de quem busca e está, de algum modo, em suspenso [pendet quodammodo] e não repousa no fim para o qual tende, senão quando aquilo que é buscado é encontrado e se une àquele que busca. (Giorgio Agamben, A Linguagem e a Morte)

12.
A etimologia da palavra studium torna-se (…) transparente. Ela remonta a uma raiz st- ou sp-, que designa o embate, choque. Estudo e espanto (studiare e stupire) são, pois, aparentados neste sentido: aquele que estuda encontra-se no estado de quem recebeu um choque e fica estupefacto diante daquilo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até ao fim, como de se libertar delas. Aquele que estuda fica, portanto, sempre um pouco estúpido, atarantado. Mas, se por um lado ele fica assim perplexo e absorto, se o estudo é essencialmente sofrimento e paixão, por outro lado, a herança messiânica que ele traz consigo incita-o incessantemente a prosseguir e concluir. Esta festina lente, esta alternância de estupefacção e de lucidez, de descoberta e de perda, de paixão e de acção constituem o ritmo do estudo. (Giorgio Agamben, Ideia da Prosa)

13.
I take the word ‘studio’ literally, not as a space of production but as a time of knowledge. (Gabriel Orozco)

14.
Perante o acontecimento pensamos em suspenso e estudamos em choque.

15.
Na verdade, tempo e acontecimento são sinónimos, quer dizer, se o tempo é duração e se esta depende da diferença proporcionada pelo acontecimento, então não pode existir tempo sem acontecimento. Como nos lembra Benjamin, ao escrever sobre um seu conhecido, “viveu o período mais ordenado da sua vida quando era mais infeliz. (…) O caminho da sua vida parecia que estava pavimentado, sem a menor fresta onde o tempo tivesse oportunidade de proliferar”.

16.
O acontecimento interrompe.

17.
A sua interrupção deve transtornar tanto quanto a sua aparição surpreendeu. Neste sentido o seu uso deve ser extremamente circunspecto, e raro, como o grito, que não tem eficácia e poder terrível senão quando nada o prepara e quando nada o repete. (Pascal Quignard, Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos)

18.
Como é belo o teu grito que o teu silêncio me dá! (René Char, O quarto no espaço)

19.
A rotina é algo que roda e volta ao mesmo – pisa as pegadas do caminho percorrido, como se a experiência fosse um campo minado –, e nesse movimento gera uma força já não centrífuga, para fora, mas centrípeta, para dentro. É, por assim dizer, um movimento de destruição de toda e qualquer possibilidade de desejo – que é sempre desejo de exterior, de algo que nos é exterior, que não somos ou possuímos –, num processo cada vez mais autista, de auto-suficiência até ao definhamento. O desejo depende da distância, da distância que nos liga ao mundo. Na decadência centrípeta da rotina, o espaço escasseia cada vez mais, até ao ponto da última coincidência num ponto central, um buraco negro, consumista e final.

20.
É a distância que nos permite desejar, como já vimos – por isso escreveu Blanchot que o desejo é a distância tornada sensível. Só desejamos o que não somos, o que não temos, o lugar onde não estamos. Só desejamos porque a distância se intromete entre nós e as coisas.

21.
Ela sabia o que era o desejo – embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. (Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

22.
Depois de muito matutar, Zeus, por fim, lá se decide: «Parece-me», anunciou, «que arranjei processo de continuar a haver homens e acabar de vez com a sua arrogância: é enfraquecê-los. Agora mesmo vou dividi-los ao meio um por um.» (…) À medida que os ia cortando, encarregava Apolo de lhes virar o rosto e a metade do pescoço para a superfície amputada, na ideia de que os homens se tornariam mais humildes com o espectáculo da sua própria amputação diante dos olhos. (…) Ora, quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada metade, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; e estendendo as mãos em volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam do que fundir-se num só ser. (…) Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e muda-lhes para diante os órgãos genitais. (…) Ao mudarlhes, pois, os órgãos genitais para diante, Zeus determinou que a geração humana passasse também a efectuar-se de uns para outros. (…) Dessa época longínqua data, sem dúvida alguma, a implantação do amor entre os homens – o amor que restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois um só, curando assim a natureza humana. (Platão, O Banquete)

23.
Deixa-te acariciar, vá.
Gosto de dividir em dois tudo
no teu corpo, assim como este verão
dividia o mar quando nadava de bruços.
(Herman de Coninck, ‘Tarde de Verão, Trocamos palavras e tempo’)

24.
É aquela a explicação de Aristófanes para o desejo – cada um de nós é afinal apenas metade; virá daqui talvez a ideia da alma-gémea, da cara-metade, etecetera; a busca por tentativa e erro (falhar sempre melhor) do outro que nos restitua a unidade. Até lá, contudo, a pele isola.

25.
Porque eu vivia, quando abro os braços, dentro e fora. E quando ponho as mãos nos joelhos, só dentro. E quando ponho as mãos debaixo dos pés, já lá fora. (Botho Strauss, Fragmentos da Incompreensão)

26.
Nunca andamos de mão dada, a não ser para passar a estrada.

27.
I can feel for any reason
need at any time
No sentimental niceties
and it doesn’t cost a dime
Have it when I want it
and every time’s the best
It’s convenient
When I need release
and guaranteed success
Pain killer

There is nothing to be won
nothing I can lose
I can live alone and love myself
and never get the blues
Not obligated by dependency
to demonstrate my gratitude
It’s a remedy
a safe investment in my attitude
of being good to me
being good to me

They make no demands, my own hands
My own hands, make no demands

It’s a simple reaction
an easy satisfaction
No ultimate thrill, but still
relief without grief
of betrayal
I can say I need you
but it isn’t true
I can say I love you
but it’s only an invention
to perpetuate convention
I could say you’re important
but it’s only relative
Pain killer cools out
the immediacy of priority

Get no stress from my own caress
Get no stress from my own caress
I get no stress from my own caress

It’s not an ideal world
and I didn’t make it
If the risk is there
I ain’t gonna take it
I’ll take control
The redundancy
of sexual dependency
And if there’s no penetration
you got to use imagination

I’m happy with my hand
I’m happy with my hand
I’m happy with my hand
(Annette Peacock, Happy with my hand)

28.
Schlegel mostrava que, como as obras que admirávamos mais – quer dizer, desde a Renascença, as obras da Antiguidade – nos tinham chegado no estado de fragmentos, as obras dos modernos procuravam assumir esse estado logo ao nascerem, imputando o fascínio que exercem à fragmentação e julgando que estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes, ao provocarem o desejo do todo, ampliavam a emoção. (…) [Os fragmentos] são comparáveis àquelas pocinhas de água caídas no caminho depois do aguaceiro e que a terra não bebeu. Cada uma delas reflecte todo o céu, as nuvens que se rasgaram e que passam, o sol que luz de novo. (Pascal Quignard, Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos)

29.
E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água. (Julio Cortázar, Rayuela)

30.








(Gabriel Orozco, Pelota en agua)

31.
A pele isola; a pele fragmenta. A pele é um sistema que divide o mundo (num interior e num exterior); a pele é uma ameaça. (sobre a pele, ler o texto “Fotografias da Distância” – download em www.lightinthefridge.blogspot.com)

32.
Diz-se que o palhaço chora enquanto faz rir; a máscara, com o sorriso permanente pintado, exacerba a pele – nele, como em nenhuma outra figura, a pele institui um dentro e um fora absolutamente divergentes.

33.
É uma oval perfeita, ou melhor, uma oval um pouco triangular, mas a pele é luminosa, como se fosse iluminada pelo interior. (Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) a descrever a senhora Tabard (Delphine Seyrig) em Baisers Volés de François Truffaut)

34.
Quando passei por ti ali nas arcadas frescas da câmara de Tavira, tu tão branca branca na tua pele de norueguesa, e eu branco branco também, que pensei ser possível diluirmo-nos um no outro – de quem é esta perna, esta mão?

35.
I am always taken with the experience of sitting on a seat in the subway and feeling the body heat of someone who sat there before me. Maybe I never saw them, but I feel very close. One body recognizes the warmth of another. I seek that recognition in ny work. (Janine Antoni)

36.
Mulheres que ninguém vê, atenção! Poeta procura modelo para poemas. Sessões de pose exclusivamente durante sono recíproco. René Char, 8 ter, rue des Saules, Paris. (Inútil chegar antes do cair da noite. A luz é-me fatal). [Este texto apareceu sob a forma de pequeno anúncio num jornal parisiense; Char recebeu a visita de duas jovens que, como estava especificado, se apresentaram ao cair da noite…] (René Char, Anúncio)

37.
I’ll be with you. I’ll be there.
I’ll never leave you.
Your shirt on my chair.
Laurie Anderson, Bright Red)

38.
Os reflexos são respostas orgulhosas que certas superfícies dão à luz incidente, como faz a tua pele ao sol que a notabiliza.

39.
Uma pedra não tem pele. (Rosa Maria Martelo, A Porta de Duchamp)

40.
[Sabão,] nenhuma casca, nem sequer epiderme: porque nenhuma pretensão de ser autónomo. (Francis Ponge, O Sabão)

41.
Forensic specialists imagine the faces that masked old skulls. (David Shields, Reality Hunger)

42.
O arqueólogo restitui a carne ao osso, e a máscara ao rosto.

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O fragmento é uma presença que mostra uma ausência; nisto, funciona como as palavras e os rastos. Este texto é também ele fragmentado, pixelizado; evoluímos aos solavancos; tenta servir para alguma coisa, aliás como o título dá a entender, mas o seu sucesso é incerto. Estas notas, estes fragmentos – píxeis –, são resultado mais da confusão que da depuração (purificação), sendo que a confusão é aqui vista como um estado potente de ligações e pontos de fuga. Lisboa, Junho 2010

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